O início do ano letivo na escola naval (EN), na época chamado de “Curso Prévio”, foi dura amostra do que, dali por diante, nos iria ser determinado: extenso trabalho de adaptação e cumprimento das regras existentes.
A alvorada foi um expressivo começo: toque de corneta e acompanhamento de tambor às cinco e meia da madrugada, ordens verbais através do sistema de fonoclamas, a abrangerem uniforme, preparação para o “marche-marche”, café da manhã e aula de natação só para os que nadavam pouco ou nada – o que era o meu caso. Fiquei sabendo que era dado apelido de “afogado” a todo aquele a quem destinava as aulas de natação básica. Naquela tenebrosa manhã, embora ainda fosse quase noite, conheci a piscina, cuja água era salobra. Conheci também o professor de natação, o Sr. Soledade, cujos modos truculentos – vimos depois – abrigavam excepcional coração e camaradagem no trato com os aspirantes “afogados” de nossa turma, o que proporcionou uma grande amizade, que veio mais tarde, com aquele senhor grisalho de corpo atlético.
Soledade sempre andava com um inseparável caderno, onde deveria anotar faltas e observações gerais de seus alunos, levando-as ao conhecimento do Departamento Escolar. Na realidade, porém, raramente precisava levar ao conhecimento do Departamento tais observações, sabendo resolver os problemas, contornando-os, para evitar prejuízo no grau de oficialato que todos poderiam sofrer. Mas, naquele dia, aterrorizou-nos ser recebidos por um desconhecido, postado junto a um dos trampolins da antiga piscina, à nossa espera, com o famoso caderno sob o braço musculoso, apesar de seus cinqüenta e poucos anos.
Preocupo-nos, mais ainda, tomar conhecimento, naquele dia, de que, ao final de todo o curso da Escola, entre as provas, havia uma, chamada de Percentagem de Natação, que consistia em nadar 200 m num tempo indicado. Quem não preenchesse o requisito mínimo iria, simplesmente, para a rua, ou seja, perderia o esforço todo de cerca de 3 anos.
Mas nem esta ameaça, a preocupar todos os “afogados”, impediu que eu colocasse em prática um plano de não comparecer a algumas aulas de natação: após verificação, sairia sorrateiramente, entre os prédios da administração, regressando ao meu camarote no 5º andar. Foi um absurdo engano, porém, pensar que Soledade não notaria meus eventuais golpes, que também passaram a ser praticados por outros “afogados”.
Num dia em que tratava do assunto “salvamento”, eu disse uma tolice, que motivou inesperada reação do professor, ao dizer-me à frente de todo o grupo: “Seu Queiroz, nunca tente salvar ninguém, senão vão os dois para o beleléu!”. Convidou, em tom de troça, eu e os demais faltosos a falar com ele após a aula. Na conversa que teve conosco não houve troça nenhuma. O que disse nos fez termos vergonha das deslealdades que havíamos cometido e prometermos que não as repetiríamos mais. Não cumprimos todos os conselhos recebidos, mas para ele isto foi suficiente. E para nós também, pois conseguimos passar na porcentagem. É com grande honra que peço um Bravo Zulu (salva de palmas) para o Sr. Soledade, o instrutor cuja palavra corretiva vinha do coração com força moral superior a qualquer punição
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